"Uma revolução não é o mesmo que convidar alguém para jantar,
escrever um ensaio, ou pintar um quadro...
Uma revolução é uma insurreição, um ato de violência pelo qual
uma classe derruba a outra.” (Mao Tse Tung)
Dizia-me um amigo argentino, nos anos 60, que seu país, rico antes da Segunda Guerra, optara no pós-guerra pelo subdesenvolvimento e pelo terceiromundismo. E não se livraria dessa neurose enquanto não se livrasse de três complexos: o complexo da madona, o fascínio das ossadas e a hipóstase da personalidade. Duas madonas se tinham convertido em líderes políticos - Evita e Isabelita. As ossadas de Evita foram alternativamente sequestradas e adoradas, exercendo absurdo magnetismo sobre a população. E a identidade nacional era prejudicada pelo fato de o argentino ser um italiano que fala espanhol e gostaria de ser inglês...
A Argentina parece ter hoje superado esses complexos. Agora, é o Brasil que importa (sem direitos aduaneiros, como convêm ao Mercosul) um desses complexos.
Os estrangeiros que abrem nossos jornais não podem deixar de se impressionar com o espaço ocupado pelas ossadas: as ossadas sexuais de PC Farias, as ossadas ideológicas dos guerrilheiros do Araguaia e as perfurações do esqueleto do capitão Lamarca! Em vez de importarmos da Argentina a tecnologia de laticínios, estamos importando peritos em "arqueologia moderna", para cavoucar as ossadas do cemitério da Xambioá. Há ainda quem queira exumar cadáveres e ressuscitar frangalhos do desastre automobilístico que matou Juscelino, à procura de um assassino secreto. Em suma, estamos caminhando com olhos fixos no retrovisor. E o retrovisor exibe cemitérios.
Na olimpíada mundial de violência, os militares brasileiros da revolução de 1964 não passariam na mais rudimentar das eliminatórias. Perderiam feio para os campeões socialistas, como Lênin, Stálin e Mao Tsé-Tung. Seriam insignificantes mesmo face a atletas menores, como Fidel Castro, Pol Pot, do Camboja, ou Mengistu, da Etiópia.
Os 136 mortos ou desaparecidos em poder do Estado, ao longo das duas décadas de militarismo brasileiro, pareceriam inexpressivos a Fidel, que só na primeira noite pós-revolucionária fuzilou 50 pessoas num estádio. Nas semanas seguintes, na Fortaleza La Cabaña, em Havana, despachou mais 700 (dos quais 400 membros do anterior governo). E ao longo de seus 37 anos de ditadura, estima-se ter fuzilado 10 mil pessoas. Isso em termos da população brasileira equivaleria a 150 mil vítimas. Tiveram de fugir da ilha, perecendo muitos afogados no Caribe, 10% da população, o que, nas dimensões brasileiras, seria equivalente à população da Grande São Paulo.
Definitivamente, na ginástica do extermínio, os militares brasileiros se revelaram singularmente incompetentes. Também em matéria de tortura nossa tecnologia é primitiva, se comparada aos experimentos fidelistas no Combinado del Este, na Fortaleza La Cabaña e nos campos de Aguica e Holguín. Em La Cabaña havia uma forma de tortura que escapou à imaginação dos alcaguetes da ditadura Vargas ou dos "gorilas" do período militar: prisioneiros políticos no andar de baixo recebiam a descarga das latrinas das celas do andar superior.
O debate na mídia sobre os guerrilheiros do Araguaia precisa ser devidamente "contextualizado" (como dizem nossos sociólogos de esquerda). Sobretudo em benefício dos jovens que não viveram aquela época conturbada. A década dos 60 e o começo dos 70 foram marcados mundialmente por duas características: uma guinada mundial para o autoritarismo e o apogeu da Guerra Fria. Basta notar que um terço das democracias que funcionavam em 1956 foram suplantadas por regimes autoritários nos principais países da América Latina, estendendo-se o fenômeno à Grécia, Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e à própria Índia, onde Indira Ghandi criou um período de exceção.
Na América Latina, alastrou-se o que o sociólogo O'Donnell chamou de "autoritarismo burocrático". O refluxo da onda democrática só viria nos anos 80, que assistiria também à implosão das ditaduras socialistas.
Uma segunda característica daqueles anos foi a agudização do conflito ideológico. Na era Kennedy (1961-63), que eu vivenciei como embaixador em Washington, houve nada menos que duas ameaças de conflito nuclear. Uma, em virtude do ultimato de Kruschov sobre Berlim, e outra, a crise dos mísseis em Cuba. Em meados da década, viria a tragédia do Vietnã.
É nesse contexto que deve ser analisado o episódio dos guerrilheiros do Araguaia e da morte de Lamarca. Não se tratavam de escoteiros, fazendo piqueniques na selva com canivetes suíços. Eram ideólogos enraivecidos, cuja doutrina era o "foquismo" de Che Guevara: criar focos de insurreição, visando a implantar um regime radical de esquerda. Felizmente fracassaram, e isso nos preservou do enorme potencial de violência acima descrito.
Durante nossos "anos de chumbo", não só os guerrilheiros sofreram; 104 militares, policiais e civis, obedecendo a ordens de combate ou executados por terroristas, perderam a vida. Sobre esses, há uma conspiração de silêncio e, obviamente, nenhuma proposta de indenização. Qualquer balanço objetivo do decênio 1965-75 revelará que no Brasil houve repressão e desenvolvimento econômico (foi a era do "milagre brasileiro"), enquanto nos socialismos terceiromundistas e no leste europeu houve repressão e estagnação.
É também coisa de politólogos românticos pensar que a revolução de 1964 nada fez senão interromper um processo normal de sucessão democrática. A opção, na época, não era entre duas formas de democracia: a social e a liberal. Era entre dois autoritarismos: o de esquerda, ideológico e raivoso, e o de direita, encabulado e biodegradável.
Hoje se sabe, à luz da abertura de arquivos, que a CIA e o KGB (que em tudo discordam) tinham surpreendente concordância na análise do fenômeno brasileiro: o Brasil experimentaria uma interrupção no processo democrático de substituição de lideranças. Reproduzindo o paradigma varguista, Jango Goulart, pressionado por Brizola, queria também seu "Estado Novo". Apenas com sinais trocados: uma república sindicalista.
As embaixadas estrangeiras em Washington, com as quais eu mantinha relações como embaixador brasileiro, admitiam, nos informes aos respectivos governos, três cenários para a conjuntura brasileira: autoritarismo de esquerda, prosseguimento da anarquia peleguista com subsequente radicalização, ou guerra civil de motivação ideológica. Ninguém apostava num desenlace democrático...
Parece-me também surrealista a atual romantização pela mídia (com repercussões no Judiciário) da figura do capitão Lamarca, que as Forças Armadas consideram um desertor e terrorista. Ele faz muito melhor o perfil de executor do que de executado. Versátil nos instrumentos, ele matou a coronhadas o tenente Paulo Alberto, aprisionado no vale da Ribeira, fuzilou o capitão americano Charles Chandler, matou com uma bomba o sargento Mário Kozell Filho, abateu com um tiro na nuca o guarda-civil Mário Orlando Pinto, com um tiro nas costas o segurança Delmo de Carvalho Araujo e procedeu ao "justiçamento" de Márcio Leite Toledo, militante do Partido Comunista que resolvera arrepender-se.
Aliás, foram dez os "justiçados" pelos seus próprios companheiros de esquerda. Se o executor acabou executado nos sertões da Bahia, é matéria controvertida. Os laudos periciais revelam vários ferimentos, mas nenhum deles oriundo de técnicas eficientes de execução que o próprio Lamarca usara no passado: tiro na nuca (metodologia chinesa), tiro na cabeça (opção stalinista) ou fuzilamento no coração (método cubano). As Forças Armadas têm razão em considerar uma profanação incluir-se Lamarca na galeria de heróis.
As décadas de 60 e 70, no auge da Guerra Fria, foram épocas de imensa brutalidade. Merecem ser esquecidas, e esse foi o objeto da Lei de Anistia, que permitiu nossa transição civilizada do autoritarismo para a democracia. Deixemos em paz as ossadas. Nada tenho contra a monetização da saudade, representada pela indenização às famílias das vítimas. Essa indenização é economicamente factível no nosso caso. Os democratas cubanos, quando cair a ditadura de Fidel Castro, é que enfrentariam um problema insolúvel se quisessem criar uma "comissão especial" para arbitrar indenizações aos desaparecidos. Isso consumiria uma boa parte do minguado PIB cubano!
Nosso problema é saber se a monetização da saudade deve ser unilateral, beneficiando apenas as famílias dos que se opunham à revolução de 1964. Há saudades, famílias e ossadas de ambos os lados.
Roberto Campos, economista e diplomata, já falecido, foi, entre outros cargos, embaixador nos Estados Unidos, deputado federal, senador e ministro do Planejamento. É autor de diversas obras sobre política e economia, destacando-se suas memórias com o título "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994). Texto publicado nos jornais O Globo e Folha de São Paulo, em 04-08-1996.